09 agosto 2019

D. Rosário


O casal Ferreira tinha escolhido a sua terra natal para viver os dias que lhe sobejavam da reforma trazida de França.
O Sr. José e a D. Rosário deixaram para trás os árduos trabalhos e infindáveis dificuldades, que a seu tempo lhes permitiu o pecúlio e as pensões que garantiam uma razoável estabilidade e a desejável serenidade para a última etapa da sua vivência. Ficara também naquelas terras gaulesas, agora mais próximas que outrora, a família mais chegada, constituída por filhos e netos, que já os havia com fartura.
A casa onde habitavam era propriedade sua, construída com o fruto do seu suor e por muitos anos constituída como móbil principal da aventura além-pirenaica.
Era uma habitação simples, térrea, de dimensões adequadas à instalação do casal e a albergar o resto da família que todos os anos, por altura do agosto, arribava para matar saudades e tomar um pouco do nosso sol. Localizava-se nas redondezas do aglomerado habitacional da povoação e dispunha de um pequeno quintal.
Era no quintal que o Sr. Ferreira passava grande parte do seu tempo, dedicando-lhe especial atenção, como que justificando os anos em que aquela sua reconhecida apetência para a agricultura foi desprezada e ignorada, mercê das condicionantes impostas pela emigração. Foi no quintal, numa manhã soalheira de um dia primaveril, que o Sr. Ferreira encontrou de forma repentina e prematura a morte, no momento em que cumpria mais um ritual de inspeção e admiração à sua pequena horta.
E sem o saber, este foi o momento em que D. Rosário passou a assumir o protagonismo desta pequena história.
D. Rosário era uma senhora que estaria talvez na casa dos sessenta e muitos, a quem os anos e a vida dura deixaram visíveis traços no rosto. De estatura baixa e magra, era contudo uma mulher vivaça e briosa, que quando vinha à rua não esmorecia nos cuidados a ter com a pintura dos lábios e das unhas. Mas era analfabeta.
Com a morte do marido, a senhora foi compelida a tratar de assuntos que até então estavam fora da sua alçada, e nesses, estavam os que se relacionavam com as suas idas ao banco. Era aqui que se passavam os atos mais pungentes e vexatórios a que na sua ótica se sujeitava, ao ter de apor a impressão digital para validar a quitação dos levantamentos de dinheiro que efetuava. Ainda por cima, em público.
A situação incomodava-a e mexia com o seu egotismo.
Daí que, com determinação ousou aprender a escrever o seu nome, e fê-lo com tal sucesso que de seguida partiu para um patamar superior da literacia, onde igualmente foi bem sucedida, o que, naturalmente, a encheu de justificado orgulho e satisfação.
Mas o tempo, que é indomável e inexorável, trazia-lhe outro tipo de problema: o da solidão.
Quando D. Rosário começou a sentir os primeiros assomos da solidão e a falta de carinho, tratou logo, da forma expedita que lhe era própria, em arranjar homem. Encontrou o novo aconchego numa pessoa bem mais velha.
Quis ela que as segundas núpcias fossem formalizadas na missa mais concorrida de domingo, para que toda agente testemunhasse que a união se processava em observância dos mais elevados princípios morais e de decência e sobre o caso não surgissem os previsíveis e maledicentes mexericos.
O casamento foi sol de pouca dura.
Confidenciava-me mais tarde D. Rosário, que a separação precoce e inusitada se deveu ao facto do homem teimar em não cumprir com os seus deveres matrimoniais.